Às vésperas de embarcarmos, coletivamente, à bordo de mais uma aventura conhecida como carnaval, o primeiro propriamente dito após o longo e difícil período da pandemia de Covid-19, é importante falarmos sobre um outro aspecto da folia, menos abordado e visibilizado nas narrativas dominantes sobre o tema. Num recorte temporal mais recente, é possível perceber que em algumas cidades, com o aumento da escala, proporção e engajamento dos festejos carnavalescos, aliado ao grande interesse turístico e econômico disparado pela festa, o carnaval passou a mobilizar engendramentos cada vez mais amplos de logísticas, equipamentos e estruturas. Esses elementos passaram a tensionar uma série de espacialidades e outras dinâmicas urbanas existentes, incorporando-se, cada vez mais invasivamente, na relação entre essa importante festa popular e determinados espaços das cidades.
Apesar de o Brasil ser celebrado, cultural e simbolicamente, como o país do carnaval, sobretudo a partir de festejos mundialmente conhecidos como os de Salvador, Olinda e Rio de Janeiro, a festa não é uma exclusividade brasileira. Cidades como Barranquilla, na Colômbia, Nice, na França, e Veneza, na Itália, são alguns exemplos de locais que possuem carnavais singulares e com tradições centenárias. A dimensão essencialmente urbana é um traço característico da festa que, historicamente, se configurou como um momento importante de encontro e sociabilidade da população nos espaços públicos. Festas populares, como o carnaval, costumam estar profundamente relacionadas ao uso das ruas e demais espacialidades da cidade de um modo distinto de seu habitual, permitindo sua apropriação, reelaboração e experimentação pelas pessoas, de maneira pública e coletiva, em situações diferenciadas de seu cotidiano.
Sendo considerado, em 2005, pelo livro dos recordes Guinness Book como “o maior carnaval de rua do mundo”, o carnaval de Salvador, na Bahia, tem uma relação complexa com sua cidade, atravessada por uma série de disputas histórica e espacialmente empreendidas sobre determinadas regiões. Sua configuração oficial mais recente é estruturada a partir de circuitos por onde desfilam os trios elétricos, figuras criadas na década de 1950 mas que ainda hoje, após uma série de transformações tecnológicas e estéticas, conformam a atração principal e grande símbolo da festa. Dentre os circuitos, destacam-se os dois principais: o do Campo Grande, mais tradicional e localizado na região central, e o da Barra-Ondina, estabelecido mais recentemente na orla Atlântica e que ganhou grande fama e visibilidade ao associar-se, desde o princípio, ao cenário de ascensão musical e mercadológica da Axé Music baiana, a partir da década de 1990.
Em paralelo ao crescimento do novo circuito, foi se estabelecendo um novo formato de carnaval em Salvador. Não que o circuito da Barra-Ondina seja inteiramente inovador em suas bases e premissas mais profundas, mas a maneira e a proporção com que ele foi se instalando - e também se espalhando - sobre o espaço da cidade é diferente de seus formatos carnavalescos anteriores. Alguns autores, como Manoel José de Carvalho, falam sobre o estabelecimento de uma "cidade efêmera do carnaval" sobre a cidade cotidiana de Salvador, devido a tamanha mobilização e transformação que a capital baiana sofre anualmente, em diversos aspectos, sobretudo na região que compreende esse circuito.
As séries fotográficas que permeiam este texto foram registradas semanas antes do início dos carnavais de 2017 e 2019, em Salvador, mas se repetem anualmente. Nelas, não enxergamos aquela multidão dançante e feérica que, como cantada por Caetano Veloso, vai atrás do trio elétrico. Os possíveis estranhamentos disparados pelos registros se relacionam à não associação desse tipo de imagem, e também de espacialidade, às visualidades mais óbvias e representações mais recorrentes do carnaval soteropolitano, e fazem emergir uma série de questões que não ratificam o seu imaginário idealizado. Muito se divulga sobre a festa, especialmente em termos de imagem, mas pouco se fala sobre seus impactos urbanos, sobretudo em sua atual configuração nesse circuito. As cenas retratadas, em sua maioria, são de conhecimento geral da população, sobretudo da parcela que é mais afetada diretamente por essas dinâmicas, mas costumam passar despercebidas ou até "familiarizadas" aos olhares de muitos, por tratar-se de uma prática tão frequente naqueles territórios, ano após ano.
A organização espacial da cidade começa a ser planejada e executada meses antes do início da festa. Uma série de estruturas, aliadas a todo o maquinário, mão de obra e demais componentes necessários para que as mesmas se ergam e operem, invadem o cenário de Salvador, incorporando-se à paisagem cotidiana da cidade-carnaval. Tapumes, toldos, cercas, placas de sinalização, postes de localização, banheiros químicos e guindastes são alguns dos muitos elementos e tipologias que passam a fazer parte do dia a dia desses espaços e de quem convive e transita por eles. Nessa relação, muitas vezes, direitos da população como o de ir e vir e o acesso a determinados locais como calçadas, ciclovias, praças, praias e quadras de esporte são cerceados pela megalomania atual do carnaval soteropolitano, numa ironia aos propósitos de uma festa que, em seu âmago, se propõe como ativadora do encontro coletivo de pessoas no espaço público urbano.
A construção de palanques e arquibancadas efêmeras nas bordas das ruas, para assistir ao desfile dos trios elétricos, não é uma novidade em Salvador. No entanto, a partir do final da década de 1990, em conjunto ao desenvolvimento do novo circuito da Barra-Ondina, surge um novo elemento que merece destaque por ser um dos responsáveis, senão o maior responsável, pelos grandes transtornos urbanos desencadeados pela montagem da cidade-carnaval: o camarote. Segundo o dicionário Aurélio, o substantivo camarote tem origem no teatro, algo como um "compartimento especial destinado aos espectadores". Mas para além de um suporte privilegiado para assistir a rua, com o passar dos anos, eles se converteram em megaestruturas privadas que abarcam, além de boa parte da mídia, uma série de serviços e experiências como espaço gourmet, salão de beleza, spa e até shows privados dentro do próprio carnaval.
Diante de tantas transformações, parece até que Salvador não se reconhece diante de sua própria cidade-carnaval. Durante a festa, o folião não está mais localizado na Avenida Sete de Setembro ou na Avenida Oceânica, podendo se utilizar de seus marcos e referências habituais. Numa outra lógica organizacional-urbana para essa outra cidade, que deixaria os arquitetos e urbanistas modernos orgulhosos, as ruas têm suas extensões seccionadas como num grid cartesiano, identificadas por números e letras genéricas que indicam: "253-E: você está aqui".
Estas imagens e reflexões buscam lançar provocações sobre as relações entre o carnaval de Salvador e seu espaço urbano, assumindo, de antemão, sua incompletude e inabilidade de contemplar toda a complexidade dessas duas esferas. É urgente a revisão do modelo atual da festa, sobretudo quando se discute sua transferência para outra região, numa perda cultural significativa para um evento que há tanto tempo se relaciona e se desenvolve de maneira imbricada à cidade. Em meio a essas inquietudes, temos certeza apenas de que a experiência da rua - e a do carnaval - nunca vão morrer, ao sempre encontrarem brechas de existir e resistir, imersas na alegria festiva da multidão reunida na cidade.
Referências Bibliográficas
- ARANTES, Otília. Uma estratégia fatal. In: ARANTES, A.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2013
- CARVALHO, Manoel José. A cidade efêmera do carnaval. Organizado por Edvard Passos, Salvador: Edufba, 2016.
- MORTIMER, Junia. Arquiteturas do Olhar. Belo Horizonte: C/Arte, 2017